terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Itinerários portugueses 1

Dos mais sebáceos aos mais mal enjorcados nomes toponímicos do nosso Portugal, eis-me Tornada numa viajante do tempo por lugares nunca antes passados. 
De Toucinhos a Orelhudo, Perna Seca ou mesmo Perna de Pau, passando por uns belíssimos Olhos de Água, nada como parar e sentar à volta duma boa Sertã com muitos, muitos amigos. 
O simpático Casal dos Bernardos; o afamado tocador de viola - Andrés; a maravilhosa doceira Conceição; o saudoso poeta Penas Alves, o azougado Paio Mendes, o sempre alegre Casal dos Coxos, pese embora as respetivas deficiências de ambos e o atrevido Casal Ascenso Antunes.
Deste último, conta-se sobre uma estranha forma de vivência que os tornou mais ou menos famosos, lá no sítio de onde nunca saíram. Tinham um longo historial de "vendas"... Sem dúvida a mais conhecida de todas, a Venda das Raparigas, que nunca foram, coitadas, tidas nem achadas neste negócio duvidoso.
Certo dia fizeram-se à estrada para proceder à Venda do Preto, em Águas Formosas. Destas Águas, passaria o Preto para Águas Belas, onde um tal Cabeçudo o esperaria em direção ao Rego da Murta, ali pertinho de Vale do Travesso. 
(continua)

domingo, 2 de janeiro de 2022

O homem e o gato

Frente a frente. Olhos nos olhos. Bigodes contra barba. 
Era assim que o gato gostava de o encarar sempre que pulava -"catchapum"- de assalto para o seu colo. 
Ora o homem que, nem sempre primava pela virtude da paciência, arreliava-se com o bichano indiferente, apesar de advertências e castigos.
Por vezes, e depois de uma quase sempre desajeitada aterragem em cima do peito, o gato esticava as patas dianteiras, bocejava e fazia chegar o seu focinho até ao nariz do homem como se o quisesse cheirar e beijar a seguir. 
Porém, o homem, já a modos que preparado para iniciar a ancestral sesta, abria mão do seu impetuoso feitio, colocando a cabeça do bichano entre as suas mãos.
 
 
E, num ato mecanizado, "coçava" as partes laterais, bem como a frente do focinho do gato. Se o homem parava, o bichano "despersianava" os olhos, esticava novamente as patas e fazia chegar de novo o seu focinho até ao nariz do homem como se lhe quisesse dizer; "Vá lá, não pares. Continua...".  
Então entorpecido pelos soníferos afagos, o gato deixava-se adormecer com a cabeça no sítio onde coração do homem batia. 
 

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

A calculadora do tempo

Segundo a calculadora do tempo no dia de hoje, passaram os segundos, minutos, horas, dias, semanas mais dias, meses e anos que se segue:

  • 1735689600 segundos
  • 28928160 minutos
  • 482136 horas
  • 20089 dias
  • 2869 semanas, 6 dias
  • 660 meses
  • 55 anos
  • Nestes tempos atribulados de pandemia em que continua gente a desaparecer quase sem aviso e em que, por vezes, é um estranho, inconsciente e egoísta desânimo que nos espreita a toda a hora, é na intemporalidade da música que gosto de me refugiar.  E se há gente cuja escolha musical para o derradeiro momento já está feita; este instrumental poderia ser sem dúvida a minha última vontade. 

    Tara do álbum Avalon, dos Roxy Music.




    quarta-feira, 28 de julho de 2021

    Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente, de David Teles Ferreira

    "Claro que, ou ainda não tinha compreendido os mecanismos que me faziam voar, ou os voos não dependiam mesmo da minha vontade. Para o tentar descobrir passei horas noutros bancos  de outros jardins e até de miradouros e praças, mas apenas tinha conseguido uns valentes banhos de assento. Levantar voo, népia. Ficava ali, sozinho, a olhar quem passava ou se sentava nos bancos vizinhos, mas nunca nada nem ninguém me despertou o interesse. Às vezes relaxava tanto que até adormecia, mas a única coisa que consegui foi levar com uma cagadela de pombo. E sentia a falta das voltinhas do Alberto. [...]

                      capítulo  IX - pág. 35 - Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente, de David Teles Ferreira                   

    Do primeiro dia em que começou a voar, passando pela inexplicável capacidade de o fazer e por que o fazia, este o livro que hoje resolvi trazer até este espaço (um pouco ao abandono, é certo), que é de alguma forma também e, por motivos vários, especial para mim. 
    Um romance em que a magia e o esvoaçar do pensamento dominam numa estória em que outras tantas histórias e personagens se interligam e entrelaçam entre si. Relações de vizinhança ou de afeto nos seus mais variados graus - da amizade e do amor-, todas nos lembram algum lugar ou alguém. 
    O escritor faz uma abordagem estilística da solidão - da sua talvez e a dos outros (de alguns personagens) - e que é, na minha modesta opinião, uma das linhas condutoras deste romance. 
    Para amenizar essa solidão o narrador imagina-se voando, chegando mesmo a vias de facto. 
    Porque voando consegue fugir da rotina de um emprego chato e monótono; porque voando conhece ou admira outros lugares; porque voando compreende, quiçá, melhor como funciona ou se comporta o ser humano; porque ao voar, vê o que não seria possível ver de outro modo.
    Voar... Imaginar... Libertar o universo interior... Abrir os braços e planar no céu como uma ave.
    Quem disse, afinal, que não podíamos voar através dos pensamentos?!...
    O voo do narrador ou a vontade de querer voar, revela-se no início como uma inquietação quase obsessiva. Porém, com o avanço dos acontecimentos percebemos que, finalmente, e, depois de descobrir o amor, o ato e a vontade de voar se desvanecem, proporcionando menos satisfação. 
    À medida que vamos lendo este romance, a nossa mente transporta-nos um pouco para o realismo mágico presente nas obras de Gabriel Garcia Márquez e isso é muito bom.
    "Fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva (sem explicação)" - Infoescola.com  
     
    "Je vole", por Carine Achard.  
     

    domingo, 13 de junho de 2021

    Aimez, aimez; tout le reste n'est rien (La Fontaine)

    Mais (re)conhecido pelas fábulas do que pela poesia; Jean de La Fontaine.

    Élogue de l'amour

    Tout l'Univers obéit à l'Amour ;
    Belle Psyché, soumettez-lui votre âme.
    Les autres dieux à ce dieu font la cour,
    Et leur pouvoir est moins doux que sa flamme.
    Des jeunes coeurs c'est le suprême bien
    Aimez, aimez ; tout le reste n'est rien.

    Sans cet Amour, tant d'objets ravissants,
    Lambris dorés, bois, jardins, et fontaines,
    N'ont point d'appâts qui ne soient languissants,
    Et leurs plaisirs sont moins doux que ses peines.
    Des jeunes coeurs c'est le suprême bien
    Aimez, aimez ; tout le reste n'est rien.
     
    Jean de La Fontaine (1621 - 1695)

    domingo, 21 de março de 2021

    O apanhador de desperdícios, por Manoel de Barros

    De Manoel de Barros para o Dia Mundial da poesia.

    O apanhador de desperdícios

    Uso a palavra para compor meus silêncios.
    Não gosto das palavras
    fatigadas de informar.
    Dou mais respeito
    às que vivem de barriga no chão
    tipo água pedra sapo.
    Entendo bem o sotaque das águas
    Dou respeito às coisas desimportantes
    e aos seres desimportantes.
    Prezo insetos mais que aviões.
    Prezo a velocidade
    das tartarugas mais que a dos mísseis.
    Tenho em mim um atraso de nascença.
    Eu fui aparelhado
    para gostar de passarinhos.
    Tenho abundância de ser feliz por isso.
    Meu quintal é maior do que o mundo.
    Sou um apanhador de desperdícios:
    Amo os restos
    como as boas moscas.
    Queria que a minha voz tivesse um formato
    de canto.
    Porque eu não sou da informática:
    eu sou da invencionática.
    Só uso a palavra para compor meus silêncios.

    quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

    Também não sei

    "Qualquer ser humano, por mais brilhante e instruído, não sabe a maioria das coisas. Dizer “não sei” devia, por isso, ser tão natural como tossir.

    Não quero com isto dizer que somos todos ignorantes por igual; nem que o facto de ninguém saber tudo nos exime de dever saber certas coisas. O meu ponto não é um de desvalorização do conhecimento, ou de apologia da ignorância. É precisamente o oposto: acho que quando omitimos a nossa ignorância, fingindo domínio de um tema, estamos a desrespeitar quem nos ouve e confia em nós; a desrespeitar quem verdadeiramente trabalhou para adquirir conhecimento nessa área, muitas vezes com grande custo pessoal; e a desrespeitar a própria busca pelo conhecimento e pela verdade.

    A obsessão em omitir o “não sei” é uma obsessão perniciosa, pouco ética, criadora de fragilidades e inseguranças, de vergonhas e obsessões. A possibilidade de obter conhecimento em três segundos no Google, ao invés de tornar mais banal essa confissão, fez de nós autómatos do conhecimento: ao entrarmos em contato com um termo desconhecido durante uma conversa, a nossa mão dirige-se ao telemóvel, os nosso dedos ordenam uma pesquisa, e ainda o nosso interlocutor não se calou e já nós aprendemos o suficiente para podermos tecer de seguida uma resposta suficientemente credível para não passarmos por ignorantes" 

    Excerto do artigo de João Marecos.

     https://24.sapo.pt/opiniao/artigos/a-extraordinaria-beleza-de-dizer-nao-sei

    quinta-feira, 30 de julho de 2020

    Tempo


     
    Mesmo que eu queira mudar  
    De mim não consigo fugir  
    Sou feito do vento que sopra devagar 
    E do tempo que sobrar  
    E do tempo que sobrar  
    Se o segredo for deixar partir  
    No sereno do areal  
    Antes que o apego se apegue ainda mais  
    Deixo ao tempo a solução  
    Deixo ao tempo a solução  
    E se encontrares por aí  
    Quem te faça ser melhor mulher 
    Aproveita para ser feliz  
    Aproveita para ser feliz  
    Aproveita para ser feliz  
    Aproveita 
    E se encontrares por aí  
    Quem te faça ser melhor mulher 
    Aproveita para ser feliz  
    Aproveita para ser feliz  
    Aproveita para ser feliz  
    Aproveita

    quarta-feira, 15 de julho de 2020

    Portugal em números, ou seja.


    Uma notícia desta manhã no Sapo dava conta que em 2100, ou seja, daqui a 80 anos, ou seja, quando eu tiver os  meus imortais 134 anos, vamos (portugueses) ficar reduzidos, mais milhar menos milhar, a 5 000 000 (milhões) de habitantes!
    Fonix! - Pensei. Passar de 10 vírgula qualquer coisa para 5 milhões, é muito milhão!
    É muita gente a morrer, é muita criancinha a não nascer daqui até lá.
    E é sem dúvida, muita gente a preferir ter um cãozinho ou um gatinho em vez de querer repovoar o país.
    Também... diga-se de passagem que o planeta, ou seja, partes dele, está a pôr-se a jeito para que assim seja, ou seja, estamos a falar da ausência de perspectivas de futuro e o futuro do trabalho que será para muitos habitantes cada vez mais uma miragem. E quando os projectos de vida não se vislumbram exequíveis, ou seja, dificilmente viáveis, os habitantes dum país retraem-se.
    E dá nisto! ... 5 milhões a menos... Caramba!  5... 5 ... 5 ... 5 ...

    https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/portugal-podera-chegar-a-2100-com-cinco-milhoes-de-habitantes-diz-estudo

    quarta-feira, 3 de junho de 2020

    O bailado da mosca


    E eis que estava eu, deitava, assistindo ao bailado da mosca.
    Uma mosca qualquer, diga-se de "voagem". Embora lhes chamem moscas domésticas ou moscas-de-casa, eu nada fiz, faço ou farei para que elas sejam bem-vindas no meu espaço.
    No entanto, igual a todas as moscas chatas que existem por esse mundo fora e que entram nas nossas casas sem autorização, de olhos fixos na dança rodopiante da mosca, continuei a divagar. 
    Entram, mas nem sempre se dignam partir pacificamente ou, quando o fazem, vão à custa de muita mão de obra de mãos. Enxota dali, expulsa dacolá.
    Por vezes a mão acerta noutro alvo que não a mosca e quando demos por ela, já espetámos um estalo, sem querer, na pessoa que está ao lado. Azar!...
    Do mata-moscas ao spray insecticida, passando pelos pegajosos rolinhos de veneno, sem dúvida que a maior das invenções para exterminar as moscas e os respectivos parentes, foi a raqueta.
    Aquela que em tudo se parece com uma raqueta de ténis, mas com a diferença de que é recarregável numa tomada eléctrica e graças ao seu super poder electrocutante (ou electrocutor), a qualquer hora do dia ou da noite, consegue-se respirar o cheiro fétido de churrasco de mosca ou de qualquer outro membro da família Muscidae. Os mesmos que estupidamente insistem em aparecer nos contextos menos recomendáveis, como por exemplo, numa noite quente de verão, quando o sono quer transportar-nos para sonhos belos e eróticos(?!), onde não entrem melgas ou moscas rodopiando os nossos ouvidos. ZZZzzzzzzzzzzzzz...

    quarta-feira, 17 de abril de 2019

    Papoilas



    Pintada de papoilas, a seara verde cobre-se duma quietude que nos enche a alma e a vista.
     
    Comme Un P'tit coquelicot

    Le myosotis, et puis la rose,
    Ce sont des fleurs qui disent quelque chose !
    Mais pour aimer les coquelicots
    Et n'aimer que ça... faut être idiot!
    (...)

    Marcel Mouloudji (cantor, compositor e ator francês, 1922-1994)




    segunda-feira, 10 de setembro de 2018

    A espera

                       ...                 Ela espera                                                             ...
                                                                    ...         Tu esperas
                                               ....                                                                         Eu espero

    Ela tem a idade do tempo
                                                        Tu tens todo o tempo do mundo

                                                                                                                  Eu tenho o tempo contado
    Eu espero
    Tu esperas
    Ela espera
      



    quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

    A falecida

    A Clareira, 28 de dezembro de 2057

                 Caros vivos.

    Faleci 86 anos depois de ter nascido, mais precisamente em 2052.
    Passaram-se cinco após esse fatídico dia em que, eu, sentada à lareira, caí literalmente para o lado.
    A pedido, levaram-me para a cama onde me recordo de ter fechado os olhos e acordar na manhã seguinte tal e qual assim: enregelada de morte!
    "Pronto. Foi desta que morri!"- pensei.
    E deixei-me estar à espera que os vivos tomassem as providências habituais nestas circunstâncias.
    Não quis saber de mais nada. Se diziam mal de mim. Se choravam. Se sentiam pena. Se iam guerrear por causa de bens... Não queria saber.
    Estava mortinha e nada mais importava, a não ser o meu Antero que chorava copiosamente a minha partida do mundo terreno. Como eu gostava (por amor, claro) do pobre coitado!
    Já caquético e surdo que nem uma porta, era ao lado dele que eu passava os dias e as noites. Às vezes ainda tínhamos forças e ralhávamos como dois miúdos, mas éramos tão unidos, tão cúmplices que já não passávamos um sem o outro (coisas de velhos, sabem). 
    Neste preciso momento estou num local agradável com árvores apenas, e muita luz.
    Antes, recordo-me de ter entrado num túnel escuro com várias saídas. Todas elas davam para lugares esconsos, escuros, húmidos, de cheiros intragáveis... E só depois se chegava às clareiras.  
    Quando aqui cheguei, não encontrei ninguém que me esclarecesse sobre este lugar. 

    Fiquei literalmente, aborrecida de morte, pois não era assim que se recebiam os defuntos. 

    Porra! Ao menos um cartãozinho ou um bolinho de boas vindas.
    Aquelas histórias que contavam sobre o céu, o inferno e o purgatório sempre me pareceram surreais. 

    "Precisava morrer para saber toda a verdade", pensava eu em vida.
    E na verdade, as minhas suspeitas confirmaram-se; não existia céu, inferno ou purgatório.  
    No caminho até chegar a esta clareira, só encontrei gente com sorrisos escancarados na cara. Presumi que seria de felicidade por estarem ali sem preocupações e sem o tempo contado, fazendo tudo o que lhes dava na real gana.
    Parei para perguntar se era aquele o único lugar para onde eram (re)encaminhados os mortos...
    Abeirou-se, então, de mim um hippie que logo me ofereceu uma passa do seu cachimbo e me esclareceu sobre as clareiras.  

    O que variava de clareira para clareira era basicamente o tipo de vegetação. O som dos pássaros fazia-se ouvir uma vez no ano eterno e por isso todos aproveitavam para festejar o acontecimento. Foram estas as explicações do hippie, que me desejou uma boa estadia, oferecendo-me de novo uma passa que eu, educadamente, recusei (já que nunca tinha fumada em vida, também não seria em morta que ficaria com o vício).
    Esta história termina com a chegada do meu Antero (todos os dias, ia espreitar quem eram os novos inquilinos das clareiras).
    No sexto ano da minha vida celestial recebo, enfim, de braços abertos, o meu velho e inseparável Antero.
    Estava finalmente no céu!


    terça-feira, 31 de janeiro de 2017

    Possessivos

    Nem sempre a utilização dos possessivos é sinónimo de posse (no sentido de ser propriedade de) de algo ou de alguém.
    A minha ou o meu poderão apenas significar afeto, carinho, amizade, amor,... e serem apenas usados como tal.
    Lembro-me dos professores, por exemplo, que se referem muito aos alunos como sendo SEUS.
    O MEU JOÃO.
    A MINHA MARIA.
    O MEU isto.
    O MEU aquilo.
    E não sendo deles, os alunos pertencem-lhes através dos laços da afetividade. 
    E é assim que deveriam funcionar estas palavras e todas as outras.
    Do meu ao teu. Do meu ao nosso. 
    É bom ter este sentido de "posse". Ao mesmo tempo despretensioso. Ao mesmo tempo libertador e ao mesmo tempo tão reconfortante.
    É bom quando se pertence a alguém que nos quer bem, sempre.

     


    domingo, 13 de novembro de 2016

    Renascer

    Por vezes nascemos, mas com uma necessidade urgente de renascer.
    E renasce-se para se ser a mesma pessoa, apenas com um colorido ligeiramente diferente e poder pintar com as cores do arco íris, um futuro que queremos melhor. Foi assim que se sentiu o Relógio de Corda há dois anos.

    «Era um relogio de corda que, parado, esperava por quem o pusesse a medir o tempo. Porque ele gostava de medir o tempo. De ouvir o discreto tic-tac do seu mecanismo quando trabalhava. Parecia-lhe que assim o tempo custava menos a passar. Estranha idiossincrasia de quem, assim parado, estava condenado a medir eternidades. E angustiava-se por depender de quem lhe desse corda para poder ser efectivamente um medidor de tempo. Então, farto de esperar, concentrou energias e tic atrás de tac começou a funcionar sozinho. E nunca mais parou de medir o tempo.»

    David Teles Ferreira
    In Crónica de um renascimento e outras escritas de bolso, página 40.
     (Edição de Autor – 1ª Edição – junho 2016)


     

    sexta-feira, 20 de maio de 2016

    Da oração ao sujeito e predicado que sou

    Não podemos separar os elementos essenciais dentro de uma oração (frase) sem que isso provoque alguns danos.
    O sujeito como elemento que desempenha ou pratica a ação, e o predicado, ele próprio revelador da ação praticada pelo sujeito, devem ambos estar em sintonia. Complementarem-se.
    Por vezes há necessidade de complementos, uns diretos outros indiretos, ou outros, para que a oração fique mais rica ou com um sentido até, diferente, sem que, e apesar disso, o significado global da mesma fique mais empobrecido ou inteligível.
    Os elementos gramaticais unem-se numa concordância substimada por muitos. Talvez por isso, a gramática seja tão mal amada, tal mal compreendida.
    Aprendemos desde muito cedo que o adjetivo deve concordar em género e número com o nome, por exemplo. 
    E se transpuséssemos estes conceitos para outros contextos...
    Hoje refleti sobre isto. Coisas da profissão, pensei. 
    Eu sou...; nesta oração sou um sujeito simples.  
    Eu e tu somos...; eu e outra pessoa passamos a ser um sujeito composto. Porém, se substituir "Eu e tu" por "Nós", voltamos a ser um sujeito simples mesmo sendo duas pessoas (ou mais).
    Eu sou o sujeito e o predicado ao mesmo tempo. Sou também complemento  circunstancial. 
    E digo-vos que não abdicarei nunca dos complementos circunstanciais de modo, de meio, de fim ou de companhia, sem os quais os predicados da minha existência, seja como sujeito simples ou seja como sujeito composto, jamais fariam sentido.

    Ironias ou simbologias gramaticais?!

    segunda-feira, 18 de abril de 2016

    A boneca

    Jaz a boneca.

    Metro e vinte de altura, cabelo alaranjado, olhos esbugalhados, lábios carnudos.Esbelta (linda para quem apreciar o estilo).
    Jaz a boneca no recreio.
    Desmembrada. Maltratada.Violentada.
    Pernas e braços largados ao Deus dará. Mete dó.
    Jaz a boneca no recreio.
    De plástico. Assim é o seu corpo, agora molhado pela chuva que cai incessantemente.
    Nua ou vestida, outras vezes semi nua.
    Com ela brincam ao faz-de-conta.
    Com ela simulam ter sexo.
    Mas...
    Um dia...
    Levaram-na pela mão. Um cortejo de miúdos a acompanhavam.
    Algo de mau aconteceu. Pensei.
    Jaz a boneca, no recreio, nas mãos dos petizes.
    Numa bela manhã, porém, morreu.
    O funeral lhe fizeram. Enterraram-na num chão de gravilha.
    Apenas com a cabeça de fora, rezaram à sua volta. Fingiram que choravam.
    Outro dia chegou...
    A boneca ressuscitou.
    E novamente a completaram.
    Calças, sapatos, camisola, pernas e braços no sítio certo.
    Jaz Xana, a boneca do recreio, numa escola onde se passa tudo isto, e muito mais!

    sexta-feira, 15 de abril de 2016

    tempo e silêncio

    Não temos mais nada para dizer. 
    O que fomos dizendo nos últimos tempos, dissemo-lo no mais absurdo dos silêncios; daqueles silêncios que nos pesam toneladas na alma, que nos sufocam, e nos tornam seres infelizes e incompletos e insatisfeitos.
    Porque as palavras se gastaram. Porque as palavras se esvaíram por outros meios. Porque as palavras encontraram outros destinatários. Porque... porque...
    Porque tinha que ser assim?! Porque...
    O nosso tempo esgotou-se. As palavras esgotaram-se.
    Tudo se esgota, meu amor. 
    Tudo se esgota, se quisermos.


     

    domingo, 3 de abril de 2016

    ------A--L-------B--E---R---T-O----

    «O tempo engoliu aquilo que não teve força para se eternizar»

                                                          Al Berto, Diários 21/6/94

    terça-feira, 15 de março de 2016

    Contador de estrelas

    Findo mais um dia, com a solidão como companhia, lá estava ele de olhos postos no céu. 
    Não. Não era um aspirante a astronauta nem um astrónomo autodidata.
    Chamava-se Benjamim, apenas.
    Ficara assim, uma espécie de lunático noctívago, desde a partida da companheira. Quis a maldita doença que a infeliz se juntasse antes do tempo às outras estrelas. Porém, um consolo maior reconfortava a sua alma; Benjamim acreditava na existência de um paraíso cintilante. Segundo ele, o lugar para onde deveriam seguir todos os que Amam e todos os que são Amados, sem exceção.
    Fosse como fosse, era assim que o senhor Benjamim gostava de pensar; que a sua Estrela seria mais uma no meio de muitas outras.
    Mas a Estrela era igualmente uma mulher entre as mulheres; das muitas que teriam passado pelos setenta e muitos anos bem vividos deste homem. Fora ela, todavia, a única mulher, alma-quase-gémea, que lhe sossegara, numa fase já madura da vida, o coração das desgastantes paixões, aventuras e emoções fortes.
    Benjamim via no firmamento aquilo que mais ninguém conseguia perscrutar.
    Todas as noites era vê-lo sentado, estivesse frio ou calor, a admirá-lo. Por vezes não havia nada para ver, mas Benjamim sabia de cor onde estavam as constelações, os planetas,... 
    E repetia este ritual noite após noite. Pegava na velha cadeira de madeira "traçada" pelo caruncho, num lápis de carpinteiro afiado em sucessivos golpes desajeitados de canivete, num pedaço de papel amarrotado e sujo, das sacas de farinha dos animais, e escrevia. Escrevia todas as noites, versos e mais versos.
    Fê-lo até ao dia em que o céu se apagou, e as estrelas deixaram de lhe brilhar.

    Quem o avistou na manhã seguinte, debruçado na velha cadeira, ao lado de um pedaço de papel humedecido pela maresia, imediatamente correu a anunciar na aldeia que o "Contador de estrelas" se tinha apagado.