quarta-feira, 28 de julho de 2021

Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente, de David Teles Ferreira

"Claro que, ou ainda não tinha compreendido os mecanismos que me faziam voar, ou os voos não dependiam mesmo da minha vontade. Para o tentar descobrir passei horas noutros bancos  de outros jardins e até de miradouros e praças, mas apenas tinha conseguido uns valentes banhos de assento. Levantar voo, népia. Ficava ali, sozinho, a olhar quem passava ou se sentava nos bancos vizinhos, mas nunca nada nem ninguém me despertou o interesse. Às vezes relaxava tanto que até adormecia, mas a única coisa que consegui foi levar com uma cagadela de pombo. E sentia a falta das voltinhas do Alberto. [...]

                  capítulo  IX - pág. 35 - Nariz de mulher, focinho de cão, cu de gente, de David Teles Ferreira                   

Do primeiro dia em que começou a voar, passando pela inexplicável capacidade de o fazer e por que o fazia, este o livro que hoje resolvi trazer até este espaço (um pouco ao abandono, é certo), que é de alguma forma também e, por motivos vários, especial para mim. 
Um romance em que a magia e o esvoaçar do pensamento dominam numa estória em que outras tantas histórias e personagens se interligam e entrelaçam entre si. Relações de vizinhança ou de afeto nos seus mais variados graus - da amizade e do amor-, todas nos lembram algum lugar ou alguém. 
O escritor faz uma abordagem estilística da solidão - da sua talvez e a dos outros (de alguns personagens) - e que é, na minha modesta opinião, uma das linhas condutoras deste romance. 
Para amenizar essa solidão o narrador imagina-se voando, chegando mesmo a vias de facto. 
Porque voando consegue fugir da rotina de um emprego chato e monótono; porque voando conhece ou admira outros lugares; porque voando compreende, quiçá, melhor como funciona ou se comporta o ser humano; porque ao voar, vê o que não seria possível ver de outro modo.
Voar... Imaginar... Libertar o universo interior... Abrir os braços e planar no céu como uma ave.
Quem disse, afinal, que não podíamos voar através dos pensamentos?!...
O voo do narrador ou a vontade de querer voar, revela-se no início como uma inquietação quase obsessiva. Porém, com o avanço dos acontecimentos percebemos que, finalmente, e, depois de descobrir o amor, o ato e a vontade de voar se desvanecem, proporcionando menos satisfação. 
À medida que vamos lendo este romance, a nossa mente transporta-nos um pouco para o realismo mágico presente nas obras de Gabriel Garcia Márquez e isso é muito bom.
"Fundir o universo mágico à realidade, mostrando elementos irreais ou estranhos como algo habitual e corriqueiro. Além desta característica, o realismo mágico apresenta os elementos mágicos de forma intuitiva (sem explicação)" - Infoescola.com  
 
"Je vole", por Carine Achard.