quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

A falecida

A Clareira, 28 de dezembro de 2057

             Caros vivos.

Faleci 86 anos depois de ter nascido, mais precisamente em 2052.
Passaram-se cinco após esse fatídico dia em que, eu, sentada à lareira, caí literalmente para o lado.
A pedido, levaram-me para a cama onde me recordo de ter fechado os olhos e acordar na manhã seguinte tal e qual assim: enregelada de morte!
"Pronto. Foi desta que morri!"- pensei.
E deixei-me estar à espera que os vivos tomassem as providências habituais nestas circunstâncias.
Não quis saber de mais nada. Se diziam mal de mim. Se choravam. Se sentiam pena. Se iam guerrear por causa de bens... Não queria saber.
Estava mortinha e nada mais importava, a não ser o meu Antero que chorava copiosamente a minha partida do mundo terreno. Como eu gostava (por amor, claro) do pobre coitado!
Já caquético e surdo que nem uma porta, era ao lado dele que eu passava os dias e as noites. Às vezes ainda tínhamos forças e ralhávamos como dois miúdos, mas éramos tão unidos, tão cúmplices que já não passávamos um sem o outro (coisas de velhos, sabem). 
Neste preciso momento estou num local agradável com árvores apenas, e muita luz.
Antes, recordo-me de ter entrado num túnel escuro com várias saídas. Todas elas davam para lugares esconsos, escuros, húmidos, de cheiros intragáveis... E só depois se chegava às clareiras.  
Quando aqui cheguei, não encontrei ninguém que me esclarecesse sobre este lugar. 

Fiquei literalmente, aborrecida de morte, pois não era assim que se recebiam os defuntos. 

Porra! Ao menos um cartãozinho ou um bolinho de boas vindas.
Aquelas histórias que contavam sobre o céu, o inferno e o purgatório sempre me pareceram surreais. 

"Precisava morrer para saber toda a verdade", pensava eu em vida.
E na verdade, as minhas suspeitas confirmaram-se; não existia céu, inferno ou purgatório.  
No caminho até chegar a esta clareira, só encontrei gente com sorrisos escancarados na cara. Presumi que seria de felicidade por estarem ali sem preocupações e sem o tempo contado, fazendo tudo o que lhes dava na real gana.
Parei para perguntar se era aquele o único lugar para onde eram (re)encaminhados os mortos...
Abeirou-se, então, de mim um hippie que logo me ofereceu uma passa do seu cachimbo e me esclareceu sobre as clareiras.  

O que variava de clareira para clareira era basicamente o tipo de vegetação. O som dos pássaros fazia-se ouvir uma vez no ano eterno e por isso todos aproveitavam para festejar o acontecimento. Foram estas as explicações do hippie, que me desejou uma boa estadia, oferecendo-me de novo uma passa que eu, educadamente, recusei (já que nunca tinha fumada em vida, também não seria em morta que ficaria com o vício).
Esta história termina com a chegada do meu Antero (todos os dias, ia espreitar quem eram os novos inquilinos das clareiras).
No sexto ano da minha vida celestial recebo, enfim, de braços abertos, o meu velho e inseparável Antero.
Estava finalmente no céu!


terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Possessivos

Nem sempre a utilização dos possessivos é sinónimo de posse (no sentido de ser propriedade de) de algo ou de alguém.
A minha ou o meu poderão apenas significar afeto, carinho, amizade, amor,... e serem apenas usados como tal.
Lembro-me dos professores, por exemplo, que se referem muito aos alunos como sendo SEUS.
O MEU JOÃO.
A MINHA MARIA.
O MEU isto.
O MEU aquilo.
E não sendo deles, os alunos pertencem-lhes através dos laços da afetividade. 
E é assim que deveriam funcionar estas palavras e todas as outras.
Do meu ao teu. Do meu ao nosso. 
É bom ter este sentido de "posse". Ao mesmo tempo despretensioso. Ao mesmo tempo libertador e ao mesmo tempo tão reconfortante.
É bom quando se pertence a alguém que nos quer bem, sempre.

 


domingo, 13 de novembro de 2016

Renascer

Por vezes nascemos, mas com uma necessidade urgente de renascer.
E renasce-se para se ser a mesma pessoa, apenas com um colorido ligeiramente diferente e poder pintar com as cores do arco íris, um futuro que queremos melhor. Foi assim que se sentiu o Relógio de Corda há dois anos.

«Era um relogio de corda que, parado, esperava por quem o pusesse a medir o tempo. Porque ele gostava de medir o tempo. De ouvir o discreto tic-tac do seu mecanismo quando trabalhava. Parecia-lhe que assim o tempo custava menos a passar. Estranha idiossincrasia de quem, assim parado, estava condenado a medir eternidades. E angustiava-se por depender de quem lhe desse corda para poder ser efectivamente um medidor de tempo. Então, farto de esperar, concentrou energias e tic atrás de tac começou a funcionar sozinho. E nunca mais parou de medir o tempo.»

David Teles Ferreira
In Crónica de um renascimento e outras escritas de bolso, página 40.
 (Edição de Autor – 1ª Edição – junho 2016)


 

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Da oração ao sujeito e predicado que sou

Não podemos separar os elementos essenciais dentro de uma oração (frase) sem que isso provoque alguns danos.
O sujeito como elemento que desempenha ou pratica a ação, e o predicado, ele próprio revelador da ação praticada pelo sujeito, devem ambos estar em sintonia. Complementarem-se.
Por vezes há necessidade de complementos, uns diretos outros indiretos, ou outros, para que a oração fique mais rica ou com um sentido até, diferente, sem que, e apesar disso, o significado global da mesma fique mais empobrecido ou inteligível.
Os elementos gramaticais unem-se numa concordância substimada por muitos. Talvez por isso, a gramática seja tão mal amada, tal mal compreendida.
Aprendemos desde muito cedo que o adjetivo deve concordar em género e número com o nome, por exemplo. 
E se transpuséssemos estes conceitos para outros contextos...
Hoje refleti sobre isto. Coisas da profissão, pensei. 
Eu sou...; nesta oração sou um sujeito simples.  
Eu e tu somos...; eu e outra pessoa passamos a ser um sujeito composto. Porém, se substituir "Eu e tu" por "Nós", voltamos a ser um sujeito simples mesmo sendo duas pessoas (ou mais).
Eu sou o sujeito e o predicado ao mesmo tempo. Sou também complemento  circunstancial. 
E digo-vos que não abdicarei nunca dos complementos circunstanciais de modo, de meio, de fim ou de companhia, sem os quais os predicados da minha existência, seja como sujeito simples ou seja como sujeito composto, jamais fariam sentido.

Ironias ou simbologias gramaticais?!

segunda-feira, 18 de abril de 2016

A boneca

Jaz a boneca.

Metro e vinte de altura, cabelo alaranjado, olhos esbugalhados, lábios carnudos.Esbelta (linda para quem apreciar o estilo).
Jaz a boneca no recreio.
Desmembrada. Maltratada.Violentada.
Pernas e braços largados ao Deus dará. Mete dó.
Jaz a boneca no recreio.
De plástico. Assim é o seu corpo, agora molhado pela chuva que cai incessantemente.
Nua ou vestida, outras vezes semi nua.
Com ela brincam ao faz-de-conta.
Com ela simulam ter sexo.
Mas...
Um dia...
Levaram-na pela mão. Um cortejo de miúdos a acompanhavam.
Algo de mau aconteceu. Pensei.
Jaz a boneca, no recreio, nas mãos dos petizes.
Numa bela manhã, porém, morreu.
O funeral lhe fizeram. Enterraram-na num chão de gravilha.
Apenas com a cabeça de fora, rezaram à sua volta. Fingiram que choravam.
Outro dia chegou...
A boneca ressuscitou.
E novamente a completaram.
Calças, sapatos, camisola, pernas e braços no sítio certo.
Jaz Xana, a boneca do recreio, numa escola onde se passa tudo isto, e muito mais!

sexta-feira, 15 de abril de 2016

tempo e silêncio

Não temos mais nada para dizer. 
O que fomos dizendo nos últimos tempos, dissemo-lo no mais absurdo dos silêncios; daqueles silêncios que nos pesam toneladas na alma, que nos sufocam, e nos tornam seres infelizes e incompletos e insatisfeitos.
Porque as palavras se gastaram. Porque as palavras se esvaíram por outros meios. Porque as palavras encontraram outros destinatários. Porque... porque...
Porque tinha que ser assim?! Porque...
O nosso tempo esgotou-se. As palavras esgotaram-se.
Tudo se esgota, meu amor. 
Tudo se esgota, se quisermos.


 

domingo, 3 de abril de 2016

------A--L-------B--E---R---T-O----

«O tempo engoliu aquilo que não teve força para se eternizar»

                                                      Al Berto, Diários 21/6/94