A Clareira, 28 de dezembro de 2057
Caros vivos.
Faleci 86 anos depois de ter nascido, mais precisamente em 2052.
Passaram-se cinco após esse fatídico dia em que, eu, sentada à lareira, caí literalmente para o lado.
A pedido, levaram-me para a cama onde me recordo de ter fechado os olhos e acordar na manhã seguinte tal e qual assim: enregelada de morte!
"Pronto. Foi desta que morri!"- pensei.
E deixei-me estar à espera que os vivos tomassem as providências habituais nestas circunstâncias.
Não quis saber de mais nada. Se diziam mal de mim. Se choravam. Se sentiam pena. Se iam guerrear por causa de bens... Não queria saber.
Estava mortinha e nada mais importava, a não ser o meu Antero que chorava copiosamente a minha partida do mundo terreno. Como eu gostava (por amor, claro) do pobre coitado!
Já caquético e surdo que nem uma porta, era ao lado dele que eu passava os dias e as noites. Às vezes ainda tínhamos forças e ralhávamos como dois miúdos, mas éramos tão unidos, tão cúmplices que já não passávamos um sem o outro (coisas de velhos, sabem).
Neste preciso momento estou num local agradável com árvores apenas, e muita luz.
Antes, recordo-me de ter entrado num túnel escuro com várias saídas. Todas elas
davam para lugares esconsos, escuros, húmidos, de cheiros intragáveis... E só depois se chegava às clareiras.
Quando aqui cheguei, não encontrei ninguém que me esclarecesse sobre este lugar.
Fiquei literalmente, aborrecida de morte, pois não era assim que se recebiam os defuntos.
Porra! Ao menos um cartãozinho ou um bolinho de boas vindas.
Aquelas histórias que contavam sobre o céu, o inferno e o purgatório sempre me pareceram surreais.
"Precisava morrer para saber toda a verdade", pensava eu em vida.
E na verdade, as minhas suspeitas confirmaram-se; não existia céu, inferno ou purgatório.
No caminho até chegar a esta clareira, só encontrei gente com sorrisos escancarados na cara. Presumi que seria de felicidade por estarem ali sem preocupações e sem o tempo contado, fazendo tudo o que lhes dava na real gana.
Parei para perguntar se era aquele o único lugar para onde eram (re)encaminhados os mortos...
Abeirou-se, então, de mim um hippie que logo me ofereceu uma passa do seu cachimbo e me esclareceu sobre as clareiras.
O que variava de clareira para clareira era basicamente o tipo de vegetação. O som dos pássaros fazia-se ouvir uma vez no ano eterno e por isso todos aproveitavam para festejar o acontecimento. Foram estas as explicações do hippie, que me desejou uma boa estadia, oferecendo-me de novo uma passa que eu, educadamente, recusei (já que nunca tinha fumada em vida, também não seria em morta que ficaria com o vício).
Esta história termina com a chegada do meu Antero (todos os dias, ia espreitar quem eram os novos inquilinos das clareiras).
No sexto ano da minha vida celestial recebo, enfim, de braços abertos, o meu velho e inseparável Antero.
Estava finalmente no céu!