quinta-feira, 9 de agosto de 2012

"A amizade e o amor segundo uma lógica de bazar" por Miguel E.Cardoso

Miguel Esteves Cardoso escreveu, acertivo, claro e directo como sempre. Há quem não aprecie o seu estilo de escrita. Eu gosto.
Em boa verdade, parece que estamos/somos agora mais desconfiados do que em qualquer outra fase da humanidade.
Culpa de quem, de quê e porquê? As respostas devem ser muitas...

Quando a sociedade começa a formar pessoas demasiado individualistas, egoístas, calculistas, gananciosas, depreciativas... é quase certo que, acontecendo o inverso, a desconfiança  aparece na linha da frente.
Ser-se afável, simpático, sincero, bondoso ou prestativo no mundo actual são qualidades que vão fazendo parte de uma minoria de pessoas; uma minoria em vias de extinção.
Sendo assim, quanto mais raras mais importantes. E se falamos de pessoas, a importância também se manifesta na capacidade de as saber preservar ao longo do Tempo.
Porém, desenganem-se aquelas que por possuirem qualquer uma destas qualidades, se livram dos julgamentos, das opiniões e da desconfiança de terceiros.
"Não há bela sem senão" e como poderia muito bem dizer Miguel Esteves Cardoso: na vida há coisas lixadas de entender!

A Amizade e o Amor Segundo uma Lógica de Bazar 
por Miguel Esteves Cardos


"Desconfia-se do que é dado e pesa-se o que se recebe. A amizade e o amor parecem gerir-se, por vezes, segundo uma lógica de bazar. Já nem é considerado má-educação perguntar quanto é que uma prenda custou. Se esse preço é excessivo chega-se a dizer que não se pode aceitar. Recusar uma dádiva é como chamar interesseiro ao dador. É desconfiar que existe uma segunda intenção. De qualquer forma, só quem tem medo (ou corre o risco) de se vender pode pensar que alguém está a tentar comprá-lo. Quem dá de bom coração merece ser aceite de bom coração. A essência sentimental da dádiva é ultrajada pela frieza da avaliação.
A mania da equitatividade contamina os espíritos justos. É o caso das pessoas que, não desconfiando de uma dádiva, recusam-se a aceitar uma prenda que, pelo seu valor, não sejam capazes de retribuir. Esta atitude, apesar de ser nobre, acaba por ser igualmente destrutiva, pois supõe que existe, ou poderá vir a existir, uma expectativa de retribuição da parte de quem dá. Mas quem dá não dá para ser pago. Dá para ser recebido. Não dá como quem faz um depósito ou investimento. O valor de uma prenda não está na prenda - está na maneira como é prendada.
Hoje em dia, com a filosofia energumenóide e pseudojusta que impera, condensada no ditado ‹‹There is no such thing as a free lunch» é praticamente impossível oferecer um almoço a alguém. Todos os gestos de amor e de amizade são reduzidos ao valor de troca, a uma mera transacção em que é tudo avaliado, registado, saldado, pago a meias e de um modo geral discutido e destruído até estar esvaziado de significado."

 
Miguel Esteves Cardoso, in 'Último Volume'  

Texto retirado daqui.

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